O coração humano
Foi dito que somente os homens têm coração; os animais, no máximo, têm músculo cardíaco. Por isso, al falar do coração, nos deparamos com algo distinto e essencial para a nossa espécie humana. A palavra “coração” fica, em certas épocas, como que uma voz desgastada pelo uso e pelo abuso, talvez por um sentimentalismo decadente. Mas sempre renasce; porque é uma palavra chave da língua, uma “protopalavra”, isto é, uma palavra de capital importância e de primeiríssima fila.
A Escritura nos apresenta toda uma gama de dimensões do coração. O coração é o centro da pessoa, sua interioridade mais profunda, a sede do conhecimento sapiencial, o lugar de onde brotam as decisões, a profundidade em que surgem o amor e a fidelidade, a fronteira onde homem se encontra com Deus e se encontra com ele mesmo, o espaço sagrado em que Deus faz ressoar sua palavra, exerce sua salvação, derrama seu amor e deposita o dom do seu Espírito. Vejamos os textos da Escritura sagrada:
O coração é o centro da pessoa e da sua interioridade mais profunda: “Eu porei minha lei no fundo do seu ser e a escreverei em seu coração” (Jer. 31, 33). É o núcleo do qual surgem decisões: “Havia decidido em meu coração edificar uma casa onde descansasse a arca da aliança do Senhor” (1Cro 28, 2).
É a profundidade de onde nasce o amor e a fidelidade: “Amarás o Senhor, teu Deus, com todo teu coração, com toda tua alma, com toda tua mente, com todo teu ser” (Dt 6,5; Mt 22,37; Mc 12,30; cf Dt 13,4); “Eu vos darei um coração novo e vos infundirei meu espírito novo; vos arrancarei o coração de pedra e vos darei um coração de carne. Infundirei meu espírito em vós e farei que vivais segundo meus mandamentos, observando e guardando minhas leis” (Ez 36,2627).
É a fronteira onde o homem se encontra com Deus e o órgão da sua procura e do encontro: “Então procurarás ali (entre as nações) o Senhor teu Deus e o encontrarás, se o procuras com todo teu coração e com toda tua alma” (Dt 4, 29). É o âmbito em que Deus faz ressoar sua palavra de amor, consolo, rejeição:“Leválaei ao deserto e habitarei seu coração” (Os 2, 16); “falai ao coração de Jerusalém” (Is 40, 2); “a todo israelita que se entrega a seus ídolos, se logo consulta o profeta, lhe responderei eu mesmo, o Senhor… Assim chegarei até o coração dos israelitas que se distanciaram de mim… eu mesmo, o Senhor, lhe responderei” (Ez 14, 45.7).
É a profundidade onde Deus justifica, derrama seu amor e deposita seu Espírito: “quando se crê com o coração, age a força salvadora de Deus” (Rm 10, 10); “o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5, 5; Gl 4, 6). Percebemos assim como no coração, para a tradição bíblica e cristã, estão presentes, não só os sentimentos, mas todas as dimensões da pessoa: o conhecer, o querer, a decisão moral, o amor humano e teologal.
O Coração de Maria
O símbolo “Coração de Maria” nos evoca o mundo de sentimentos da Mãe do Senhor: Ela conhece a alegria transbordante (cf Lc 1, 28.47), mas também a perturbação (cf Lc 1, 29), a perda (cf Lc 2, 35), as procuras e as angústias (cf Lc 22, 48). Maria é, mesmo assim, aquela que crê, que“guarda e medita em seu coração” as manifestações de Jesus, desde o nascimento (Lc 2, 19), ou de mais tarde, na primeira Páscoa do menino (2, 51); o coração de Maria aparece então como “o berço de toda meditação cristã sobre os mistérios de Cristo” (J. M. Alonso). Maria é, ainda, modelo do verdadeiro discípulo, que escuta a Palavra, a conserva no coração e dá fruto com perseverança (Lc 8, 1115. 1921 e 11, 2728). Maria é, enfim, a mulher nova que vive sem reservas nem cálculos o dom e os afãs do amor: “o Coração de Maria é seu amor; seu coração é o centro do seu amor a Deus e aos homens” (Claret).
Desenvolvamos este último ponto, começando pelo amor a Deus. Se as veias de Maria tivessem sido abertas alguma vez, teria acontecido, e com razão, o que se conta de um místico: abriramlhe as veias e o sangue, ao cair, em vez de formar uma poça, traçava letras, que iam compondo um nome, o nome de Deus. Pois, até este ponto O levava dentro de seu próprio sangue. Tão “perdidamente enamorado dele estava”.
Maria, sob o título do seu Coração, nos mostra que a vida cristã não se sujeita a uma lei, a um sistema doutrinal, a cumprir um ritual em que se honra a Deus com os lábios. Ser cristão é viver uma relação de acolhida, confiança e entrega a Deus vivo; é uma adesão pessoal a Cristo. Desde aí se viverá a obediência à vontade de Deus, se acolherá o ensinamento do evangelho, se adorará a Deus em espírito e verdade.
Sobre o amor de Maria aos homens nos fala o Papa João Paulo II. “Jesus, dizia o Papa na encíclica Dives in misericordia, n 9, manifestou seu amor ‘misericordioso’ antes de tudo no contato com o mal moral e físico. Neste amor participa de maneira particular e excepcional o coração da que foi Mãe do Crucificado e do Ressuscitado… Nela e por Ela, tal amor não cessa de revelarse na história da Igreja e da humanidade. Tal revelação é especialmente frutuosa, porque se funda, por parte da Mãe de Deus, sobre o tato singular do seu coração materno, sobre sua sensibilidade particular, sobre sua especial aptidão para chegar a todos aqueles que aceitam mais facilmente o amor misericordioso da parte de uma mãe”.
Mas o Papa convida em outro lugar a destacar sobretudo o amor preferencial pelos pobres: “A Igreja, acudindo ao Coração de Maria, à profundidade da sua fé, expressa nas palavras do Magnificat, renova cada vez melhor em si a consciência de que não se pode separar a verdade sobre Deus que salva, sobre Deus que é fonte de todo dom, da manifestação do seu amor preferencial pelos pobres e humildes, que, cantado no Magnificat, se encontra expressado nas palavras e obras de Jesus” (Redemptoris Mater, 37).
O Coração de Maria se mostra assim como um coração grande e cheio de nomes, especialmente dos nomes dos últimos, dos mais pequeninos. Por isso a apresentarão alguns como a mulher toda coração.